"E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?"(trecho de "José", de Carlos Drummond de Andrade)
O português José Saramago, 87 anos e um Prêmio Nobel de Literatura na bagagem, partiu hoje para - cara a cara - enfrentar o grande embate a que se propôs durante sua trajetória no universo das letras: duelar com deus. Ou, talvez a esta hora, já esteja novamente a negar a existência do criador, dissertando à própria sorte em longos e não-convencionais parágrafos.
Saramago empurrou uma densa escrita goela abaixo aos que se aventuraram por seus livros. Não arredou pé e manteve seu estilo de frases intermináveis e pontuação incerta até o fim. Muitos não tiveram estômago para digerir seus textos. Tiveram seus motivos. Mas os que seguiram em frente, foram agraciados com verdadeiras obras de arte, levando-se em conta que a verdadeira arte está mais para confundir, inquietar, do que para explicar qualquer coisa.
Fui realmente pego de surpresa com a notícia. Saramago foi, lá no tempo em que eu estudava Letras, um divisor de águas. Mudei como leitor nas primeiras páginas de "Ensaio sobre a cegueira". E, assim, mudei como (quase) escritor.
Não me refiro necessariamente ao caráter contestador de seus escritos. Talvez o que me tenha arrebatado tenha sido justamente sua veia alternativa, seus rodeios, e tudo que não tenha dito quando esperava que dissesse. Penso que cumpriu o papel de se mostrar humano: contraditório, polêmico e inexato. E, agora, morto.
Mas José Saramago seguiu pela estrada que aguarda a todos nós para, hora mais, hora menos, se arrastar sob nossos pés. O homem vai. O legado fica. Para o bem ou para o mal.