A cidade
A cidade acorda em desacordo.
Um a um, os edíficios abrem
seus pares — milhares — de olhos.
Os carros, formigas de metal, rasgam a aurora.
Desperta o caos.
Sucumbe o silêncio.
A cortina de fumaça prende os pássaros,
pensamentos,
rajadas de vento.
Vozes invadem o céu em bandos.
As pessoas correm, numeradas,
como cavalos num páreo.
Façam suas apostas!
Binóculos anônimos escondem-se nas janelas
com os bilhetes na mão: a cidade é um jogo.
As horas, infiéis ao tempo,
enganam a relatividade.
Misturam-se as velocidades.
Automáticos (efeito sintomático), os passos
sincronizam-se em coreografia robótica.
Do alto, o mar de cabeças assusta.
A música do dia é o grito, a buzina,
o ronco de caminhão desgovernado.
O bicho selvagem é o cão de viaduto.
O meio-dia, a meia-vida
atravessa a pressa,
fura a alma de um desassossego marginal.
A cidade é uma saudade suspensa.
As ruas suam pelos bueiros, buracos,
poros no asfalto.
O teto desaba em choro: chuva.
Os pingos nem tocam o chão,
evaporam-se no ar baforento.
A tarde segue, com seus insetos radioativos.
Uma lufada de vento faz serpentear os papéis,
as saias e as ideias mal coladas.
Uma estranha quietude invade os bairros,
arrastando a sombra do desamparo.
Por uma miragem de tempo,
um segundo travado,
a cidade pára, em desespero quieto.
Param os motores, geradores, transformadores.
A fumaça, em trégua, dissipa-se.
A desgraça, que nunca anda desacompanhada,
encerra o expediente.
Cores confundem-se no tapete do céu,
o laranja, o rosa,
o azul perdendo espaço.
Alguém se sente feliz e ri.
Alguém se sente atrasado e corre.
Alguém se sente morrer.
E morre.
Ilustração: Patrícia Galelli