quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Contravento

Vagos sinais de sons
que me atraem,
palavras ímpares.
Entre paredes
de um concreto
invisível,
um acerto de contas
vulgar: repasso
os passos que dei.

Através das lentes
de olhos vazados,
a paisagem derrete
seu desenho selvagem — nada brilha
por luz que não seja
o fogo.
A sorte queima
suas fraquezas
em cinzeiros de
bares, entre
copos
lágrimas
promessas.

O frio viola
as linhas dos mapas,
invade meu estado
de espírito — culpo deuses inventados,
aberrações outonais.
Sequestro as sobras de tempo
de minutos abandonados: mendigo das horas,
sobrevivo de instantes não vividos,
mortes anunciadas.

Sob uma cegueira de luzes geladas,
carimbando meu passaporte
em desertas fronteiras mentais,
sigo,
porque minha única certeza
é andar.


Imagem: O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry (1943)

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Quando eu morrer

Quando eu morrer,
na inquietude
de algum outono amarelo
não quero tristezas.
Triste já é a vida,
com suas esperanças duvidosas.

Quando eu morrer,
quero uma chuva
que pareça sem fim
mas que tão breve acabe
como, inevitavelmente,
acabam nossas certezas.
Quero abraços docemente
paralisados.

E quero amigos
em torno de um vinho,
bebendo suas próprias dores
e esquecendo
letra
a
letra
o meu nome.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A fúria

Minha fúria não nasce
de fora,
vítima do externo.
Minha fúria
brota
de dentro,
culpada de si – surge
nas entranhas
da carne
visceral
e, assassina,
germina na pele
inimiga do mundo: espinho.



















Imagem: Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo
de Salvador Dalí (1943)

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Gostaria de ter escrito (2)

Congresso Internacional do Medo
Carlos Drummond de Andrade

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Gostaria de ter escrito (1)

Para compensar a falta de obras autorais, crio  a partir deste post  a série "Gostaria de ter escrito". Invadido por assombrosa humildade, publicarei, de tempos em tempos, textos que eu invejo admiro, baseado em critérios incertos, desordenados e, por vezes, absurdos. Comecemos.


Enfim, um indivíduo de idéias abertas
Marina Colasanti

A coceira no ouvido atormentava. Pegou o molho de chaves, enfiou a mais fininha na cavidade. Coçou de leve o pavilhão, depois afundou no orifício encerado. E rodou, virou a pontinha da chave em beatitude, à procura daquele ponto exato em que cessaria a coceira.

Até que, traque, ouviu o leve estalo e, a chave enfim no seu encaixe, percebeu que a cabeça lentamente se abria.