sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Invisível


Quando eu era criança, sempre preferi brincar dentro de casa. Não porque tivesse medo das possibilidades que o mundo do lado de fora da janela tinha para me oferecer: simplesmente achava injusto com a própria casa – que era sempre tão atenciosa em sua tarefa de me receber e abrigar – não conhecer todos os seus cantinhos.

Agir assim me rendeu, ao longo de toda a infância, poucos amigos. Poucos inimigos também, confesso. Não me importo. Tive anos bons, principalmente por poder escolher quando queria ficar sozinho.

Em alguns momentos, não lembro se nas terças-feiras ou quando chovia, procurava esconderijos para a minha solitária brincadeira de desdenhar a realidade. Ali, no escuro e em silêncio, embaixo de alguma cama ou camuflado em algum armário, ficava imaginando se me procuravam, ouvia (ou, não tenho certeza agora, inventava) as vozes de preocupação pelo meu sumiço.

Eu esperava por horas e nunca chegavam os bombeiros, os cães farejadores, as equipes de tevê. A vida me ensinou, assim, que nem sempre as pessoas, por mais próximas que estejam, dão pela nossa ausência. Aprenderia, depois, que elas também nem sempre dão pela nossa presença, ainda que estejamos perto.

Não sou mais triste por isso. Também não sou mais feliz, é algo que aceitei, calado e consciente.

Hoje, sei que há dias em que é preciso se esconder, sem esperar que alguém, conhecido ou não, apareça. Talvez, seja a melhor forma de se encontrar de verdade.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Desfeito


Respiro os últimos espaços de ar.
Respiro pedaços de vento.
As ruas caminham sob meus pés;
em vão, meu corpo afronta o tempo: avança. Pára. Recua.

Minhas pernas bailam um tango arrevesado.
Confundo os pés com as mãos e vou.

Sigo em frente rechaçando teorias.
Tropeço em uma palavra não dita: maldita.
As ruas terminam em “T”,
dobram-se em “L”,
cruzam-se em “X”.
Penso que letra sou (fui?) eu...

Os nomes não existem; existe apenas o som.
Todo chamamento é música.
Não há resposta em silêncio.

O sol atravessa meus olhos, esconde-se em mim.
Invadida de luz, minha cabeça levita em delírio.
Respondo perguntas não perguntadas, aprisiono imagens.
Corro à frente do meu corpo para espreitá-lo na curva. Ele não chega.
Sinto-me perdido e liberto, estranhamente impessoal.

A cidade agora é um mar:
ressoam gritos de afogados, passos de peixes.
A sombra separa o mundo em dois mundos, engole os indecisos.
Subsisto em uma espera que se alonga em séculos e segundos.
Sinto nostalgia por algo que não conheci: a isso chamariam não-saudade.

Em um mapa desenhado de veias, desliza um líquido que não é sangue.
Rio de uma desgraça qualquer, não importa: somos todos idiotas.
Persigo pássaros que voam em câmera lenta, covardes.
Os absurdos tornam-se verdades; as verdades, lendas.

Respiro outro intervalo de ar, o derradeiro.
Dou o último passo e o primeiro.
Cheguei ao fim e ao início: as coisas não mudam. Mudam as bandeiras.
Por fim, reencontro meu corpo. Ignoro. Ele disfarça.
Já somos dois, um ausente do outro.
A própria certeza é incerta; inevitável é a dúvida.

Atravesso a fronteira invisível que me divide os pensamentos.
Eles, antes de mim, sentem-se livres.

(2006)

terça-feira, 17 de abril de 2012

Quando não existir sempre

Quando por acaso me quiser
lembra de me amar em silêncio.
Não engana a ti com palavras.
Lembra de querer-me
assim: pedaço de mim. Jamais me deseje inteiro,
que o amor é medida incerta.

Quando por fim descobrir
que teu rosto faz casa em meus braços,
vem morar em mim devagar.
Não se afobe.
Não faça tropeçar o coração.

Ajeita o rosto, aquieta a alma.

Quando me amar, seja como
perfume em mim — e ao morrer de cada dia
te perderei ao vento.

Não pergunte. O amor não exigirá resposta.

Então, quando enfim não existir sempre,
te amarei. Tão quieto como um pôr-do-sol.

(da gaveta)

terça-feira, 10 de abril de 2012

Não-despedida (fragmento)

(...) Senti no gritante silêncio dos olhos dela que algo se perdia de um único golpe. Vagos, como globos foragidos de sua própria órbita, eles anunciavam a indiferença contida nas palavras, que insistiam em não sair boca afora. Fosse ela a responsável pela própria mudez, houvesse ela cadeado os sentimentos que agora sequer debatiam-se no fundo escuro das retinas ou fosse tudo parte do que ela chamava sinceramente de amor, eu jamais saberia.

Brotou-me  como se houvesse mastigado uma flor azeda  um misto de melancolia e embrulho estomacal. Lembrei do outono amarelo, dos domingos perdidos, das corridas na chuva. Imaginei-me uma peça humana de xadrez, onde apenas a rainha é feita de algo como porcelana ou leite desnatado congelado.

Apartei-me inconscientemente de uns braços que agora insistiam em mover-se contrários ao desejo da mente, retendo-me como posse. Eu, que sequer sei ser de mim, já não estava disposto a apenas não ser de alguém. Deslizei sutilmente pela mistura de lágrimas e suor que nos envolvia.

Voltaram rebobinadas à minha boca as palavras (mal)ditas que haviam sido cuspidas em horas de gozo. Misturaram-se na memória, já entorpecida de tantos desamores bebidos em copos baratos, cenas de outros filmes. Descobri que somente a pele da vida é colorida.

Ela agarrou-se a mim como se eu fosse já um defunto, na última e angustiante tentativa de julgar-nos inocentes ou culpados aos dois, sem exceção. De longe, um outro eu, já agarrado a uma nova mochila de sonhos idiotas, fotografava mentalmente o que parecia ser a negação de um abraço.

Não hesitei e segui. Na primeira estação fantasma, após doses e doses de aguardente diluidora de lembranças, embarquei em um trem invisível, famoso pela sua estrada de ferro em círculo. (...)

(da gaveta)

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Eduardo Galeano no "Sangue Latino"



"As coisas que se entendem de verdade, as coisas que podemos entender com a razão e sentir com o coração, são as coisas que a gente é capaz de olhar de dentro e de baixo".

Vale muito a pena.

terça-feira, 3 de abril de 2012

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Gostaria de ter escrito (3)

Teologia
Eduardo Galeano

O catecismo me ensinou, na infância, a fazer o bem por interesse e não fazer o mal por medo. Deus me oferecia castigos e recompensas, me ameaçava com o inferno e me prometia o céu; e eu temia e acreditava.Passaram-se os anos. Eu já não temo nem creio. E em todo caso – penso – se mereço ser cozido no caldeirão do inferno, condenado ao fogo eterno, que assim seja. Assim me salvarei do purgatório, que está cheio de horríveis turistas da classe média; e no final de contas, se fará justiça. Sinceramente: merecer, mereço. Nunca matei ninguém, é verdade, mas por falta de coragem ou de tempo, e não por falta de querer. Não vou à missa aos domingos, nem nos dias de guarda. Cobicei quase todas as mulheres de meus próximos, exceto as feias, e assim violei, pelo menos em intenção, a propriedade privada que Deus pessoalmente sacramentou nas tábuas de Moisés: Não cobiçarás a mulher do próximo, nem seu touro, nem seu asno... E como se fosse pouco, com premeditação e deslealdade cometi o ato do amor sem o nobre propósito de reproduzir a mão-de-obra. Sei muito bem que o pecado carnal não é bem visto no céu; mas desconfio que Deus condena o que ignora.