terça-feira, 10 de abril de 2012

Não-despedida (fragmento)

(...) Senti no gritante silêncio dos olhos dela que algo se perdia de um único golpe. Vagos, como globos foragidos de sua própria órbita, eles anunciavam a indiferença contida nas palavras, que insistiam em não sair boca afora. Fosse ela a responsável pela própria mudez, houvesse ela cadeado os sentimentos que agora sequer debatiam-se no fundo escuro das retinas ou fosse tudo parte do que ela chamava sinceramente de amor, eu jamais saberia.

Brotou-me  como se houvesse mastigado uma flor azeda  um misto de melancolia e embrulho estomacal. Lembrei do outono amarelo, dos domingos perdidos, das corridas na chuva. Imaginei-me uma peça humana de xadrez, onde apenas a rainha é feita de algo como porcelana ou leite desnatado congelado.

Apartei-me inconscientemente de uns braços que agora insistiam em mover-se contrários ao desejo da mente, retendo-me como posse. Eu, que sequer sei ser de mim, já não estava disposto a apenas não ser de alguém. Deslizei sutilmente pela mistura de lágrimas e suor que nos envolvia.

Voltaram rebobinadas à minha boca as palavras (mal)ditas que haviam sido cuspidas em horas de gozo. Misturaram-se na memória, já entorpecida de tantos desamores bebidos em copos baratos, cenas de outros filmes. Descobri que somente a pele da vida é colorida.

Ela agarrou-se a mim como se eu fosse já um defunto, na última e angustiante tentativa de julgar-nos inocentes ou culpados aos dois, sem exceção. De longe, um outro eu, já agarrado a uma nova mochila de sonhos idiotas, fotografava mentalmente o que parecia ser a negação de um abraço.

Não hesitei e segui. Na primeira estação fantasma, após doses e doses de aguardente diluidora de lembranças, embarquei em um trem invisível, famoso pela sua estrada de ferro em círculo. (...)

(da gaveta)

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