sexta-feira, 27 de maio de 2011

A casa que mora em mim

Sempre mudamos muito de casa. Tanto que, às vezes, eu procurava em uma espaços, coisas, bichos e vizinhos que eram de outras, anteriores. Nunca me queixei – a casa nova, pelo menos enquanto eu era criança, sempre foi um mundo novo a descobrir, uma nova folha em branco para desenhar. O que ficava para trás, era apenas passado, e criança não tem tempo para nostalgia.

Da maioria dessas casas, pouco lembro. Umas tinham meus esconderijos secretos, que, na verdade, todos conheciam. Outras tinham seus lugares proibidos, e talvez eu conhecesse todos. Da primeira, onde nasci, lá em Cruz Alta, não há nada guardado nas gavetas de minha memória. E hoje, caminho pela cidade e há um pedaço de mim em cada bairro.

No fundo não sei se invejo ou sinto pena das pessoas que viveram toda sua vida em uma única casa. Sei que sempre que passo por um desses lugares em que morei, quero pedir licença e entrar, ver se estão cuidando bem do meu antigo lar, saber quem dorme no meu velho quarto, e já confuso perguntar onde enfiaram meus brinquedos, cadê meus lápis de cor?, e sair, emburrado, batendo pé pela casa até ganhar um afago ou uma chinelada na bunda. Tudo que me resta, entretanto, é cumprimentá-la da rua, e seguir adiante.

Em algumas, não me esqueço, passei temporadas curtas, férias ou exílios forçados. Lembro de me divertir com meu avô conversando com o Cid Moreira, enquanto assistia o Jornal Nacional no apartamento de Novo Hamburgo. E depois o meu avô, já sem minha avó ao lado, delirando e teimando que sua verdadeira casa era a chácara onde vivera 50 anos antes, e para lá quis voltar até o dia em que também morreu.

Mas há uma dessas casas que ainda mora em mim, como se fosse uma saudade ao contrário. Parece que é ela que sente a minha falta, espera que eu, guri, voe de novo pelos seus corredores, abra as janelas todas para que ela possa voltar a respirar, a casa implora para que eu a invada como sempre fazia à tardinha, na volta da escola, e ali então, na sua barriga, me sinta seguro e quentinho.

Nela, me vejo em sonhos, esquadrinhando cantinhos que eu desconhecia, desenterrando lembranças como um cachorro que reencontra os ossos escondidos. Mas acordo e já não há casa, sumiram os tijolos um a um, e já não há guri nem corredor, só há um coração cheio como um balão e a vontade de morar em todos os lugares ou em nenhum.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Dois

Acordo e teimo em não acordar. Flutua a mente em espessos devaneios, distante está. O corpo, mecânico que é, não reage ao absurdo  levita inerte em uma cama de facas. Ouço as vozes que rompem minha pele. Sou alguém e nada.

O espaço é também incerto, desafia definições: funde-se em si mesmo, viola seus próprios perímetros, esconde-se em um tempo não determinado.

Ando por labirintos de corredores gelados, de pinturas descascadas. Meus olhos enxergam em sépia. Cada passo desfaz o anterior, as pegadas somem como digitais roubadas.

Assalta-me um silencioso pavor, medo de não sei quê, e as pernas, num reflexo automático, negam-se a andar. Pernas? De que pernas preciso eu, se já do corpo me desfiz? Soltam-se as travas, nada me prende.

Eu, refugiado, expulso de mim, aguardo ordens que nunca virão. Volante, volátil, guio meu próprio não-saber por uma estrada que insiste em esconder as curvas. Todas as horas são uma só, infinitas dentro de um aceitável delírio temporal. Munido de incertezas, nego minhas próprias dúvidas e, por nada mais que querer, subtraio de mim as inquietudes. Subo alguns degraus e despisto o desespero.

Sigo os sinais da sorte; desapegado de tudo, me vejo obrigado a acreditar. Salto de precipícios quilométricos, e cada queda me transporta de volta ao topo. Ensaio vôos rasantes por desertos de ossos. Teletransporto idéias.

Inquieto, grito gritos inaudíveis. Ouço respostas mudas.

Ventos trespassam-me as carnes que já não carrego. Sinto-me morrer acordado, estranhamente consciente do mal. Talvez, seja o despertar de um sono nunca dormido. Já não sou mais que o refluxo do mar de minhas revoluções internas.

Perco espaço em meu fictício campo de batalha, recuo tropas.

Sou uma sombra do meu próprio sonho, sou um não-estar, um não-chegar nunca. Um não-ser. Atam-me nós cegos, infinitos.

Dividido entre dois mundos, e acorrentado só em cada um deles, busco vestígios, rastros de minha passagem. Nada. Nunca estive aqui.

sábado, 7 de maio de 2011

!

A cidade

















A cidade acorda em desacordo.
Um a um, os edíficios abrem
seus pares — milhares — de olhos.
Os carros, formigas de metal, rasgam a aurora.
Desperta o caos.
Sucumbe o silêncio.

A cortina de fumaça prende os pássaros,
pensamentos,
rajadas de vento.
Vozes invadem o céu em bandos.

As pessoas correm, numeradas,
como cavalos num páreo.
Façam suas apostas!
Binóculos anônimos escondem-se nas janelas
com os bilhetes na mão: a cidade é um jogo.

As horas, infiéis ao tempo,
enganam a relatividade.
Misturam-se as velocidades.
Automáticos (efeito sintomático), os passos
sincronizam-se em coreografia robótica.
Do alto, o mar de cabeças assusta.

A música do dia é o grito, a buzina,
o ronco de caminhão desgovernado.
O bicho selvagem é o cão de viaduto.

O meio-dia, a meia-vida
atravessa a pressa,
fura a alma de um desassossego marginal.
A cidade é uma saudade suspensa.

As ruas suam pelos bueiros, buracos,
poros no asfalto.
O teto desaba em choro: chuva.
Os pingos nem tocam o chão,
evaporam-se no ar baforento.
A tarde segue, com seus insetos radioativos.

Uma lufada de vento faz serpentear os papéis,
as saias e as ideias mal coladas.
Uma estranha quietude invade os bairros,
arrastando a sombra do desamparo.

Por uma miragem de tempo,
um segundo travado,
a cidade pára, em desespero quieto.
Param os motores, geradores, transformadores.
A fumaça, em trégua, dissipa-se.
A desgraça, que nunca anda desacompanhada,
encerra o expediente.
Cores confundem-se no tapete do céu,
o laranja, o rosa,
o azul perdendo espaço.

Alguém se sente feliz e ri.
Alguém se sente atrasado e corre.
Alguém se sente morrer.
E morre.

Ilustração: Patrícia Galelli

...

Rei

















Carrego meus longes
nas dobras da pele.

Minhas distâncias internas
eclodem em insultos,
sutis desaforos.

O mundo é a terra escondida
nos bolsos.

Transportar o corpo
já é (glória do insucesso!)
fazer-me livre.
Eu — rei de mim,
dono de uma leva
de nadas.

Ilustração: Patrícia Galelli

E no terceiro dia...

Para ressuscitar esse espaço, novas postagens de textos velhos. Aqui vão três poemas meus belamente ilustrados pela Patrícia Galelli. Isso foi há um tempo, parecem séculos. Eram do acervo do "A insanidade não tem nome", meu antigo blog, que tinha seis leitores fiéis.


O corpo



















O corpo quer explodir — expulsar ideias,
expandir.
A pele, contudo, aprisiona os sentidos.
Faz do corpo jaula,
animais que somos.
Não lutem, porém. Não lutem.

Deixem que cheguem os anos,
a podridão da carne,
os vermes, enfim.
Não se apeguem ao corpo.

Não se apeguem
ao corpo.
O corpo — casca, projeto efêmero,
é substância volátil. Passará.
Da alma pouco sei,
sequer que exista: respiram as coisas,
pessoas,
e isto parece bastar.

Mas não se apeguem ao corpo.
O corpo é menos,
pouco.

Ilustração: Patrícia Galelli

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Quando escrevo e sou palavra

Quando escrevo, não quero agradar a deus ou ao diabo. Não escrevo para libertar demônios. Quando escrevo, desatino de mim — sou o que jamais seria e, ao mesmo tempo, o que simplesmente quero ser, cru, e sou a própria palavra.

Não escrevo para ninguém, tampouco sei se para eu mesmo. Quando se encontram nos meus textos, é porque se perderam de algo (“não sou leitor do mundo nem espelho de figuras que amam refletir-se no outro, à falta de retrato interior”, já escreveu C.D.A.).

Inevitável, contudo, é ser egoísta, quando escrevo: o que o papel recebe das minhas mãos, é meu, tão-somente meu. Frases avulsas, mentiras sinceras, nãos, sins e talvezes, nada pertence mais a quem me falou, no momento em que me foi despejado, cuspido, largado.

Quando escrevo e sou a palavra, sou fragmento de mim, sou caco, mais caco, mais caco.

Eu, pequenino, sigo o sol

Vejo o sol e o sol está lá: é o mesmo sol que iluminava meus pequenos olhos de criança, embora pareça menor. A vida, entretanto, mudou seu passo. Acelerou o tempo, atropelou-se, às vezes.

Quem ficou daqueles dias de sol enorme? O que sobrou?

Viver, até aqui, valeu a pena? Valeram os desamores, os insultos, os instantes de raiva que pareciam que nunca iam acabar, as mãos trêmulas, valeram as lágrimas, quentes ou frias?

O que eu esperava da vida? Que ela me transformasse em um herói da geração, que me sorrisse o tempo todo? Não. Agradeço pelos dias de confusão – agradeço por ter visto o feio para entender o que é o belo de verdade.

Vejo o sol e ele continua lá. Eu aqui, pequenino, em meio a seis bilhões de pessoas apressadas, sigo em frente. De certo modo, ainda vejo tudo com meus olhos de criança: o mundo é uma enorme folha em branco, esperando o traço livre do meu lápis de cor.